23.8.05

Interculturalismo e segurança

Desde os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos, bem como os que se seguiram em Madrid e em Londres, a crítica do multiculturalismo saltou para a agenda pública, como se nele residisse a causa do novo terrorismo internacional ou das tensões étnico-culturais na Europa. Destaca-se nessa crítica que as sociedades ocidentais são excessivamente tolerantes e permissivas na aceitação no seu seio da diferença cultural e religiosa, deixando até medrar radicalismos que lhe são hostis. Importaria, segundo esta perspectiva, recuar nessa abertura e estabelecer outros referenciais mais fechados e, presume-se, mais uniformes em termos religiosos e culturais. Esta tendência tem vindo a consolidar-se entre o "politicamente correcto" como se fosse inevitável e urgente. Ora tal leitura é precipitada e perigosa. [...] É importante perceber que não é a diversidade cultural que efectivamente está em causa, mas o radicalismo fora-da-lei. [...]

Num mundo globalizado, de fronteiras ténues e com uma mobilidade humana crescente, a presença da diversidade cultural não é uma opção: é uma realidade incontornável. Em 2001, a UNESCO, através da sua Declaração Universal da Diversidade Cultural, sublinhava que "em sociedades cada vez mais diversificadas torna-se indispensável garantir uma interacção harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como a sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz". O multiculturalismo é, de todas as opções de gestão da diversidade cultural, a mais exigente: necessita, para o seu desenvolvimento, de convicção, investimento, negociação e transformação mútua. Este modelo permite às minorias étnicas a oportunidade de expressar e de manter elementos distintivos da sua cultura ancestral, especialmente língua e religião, acreditando que indivíduos e grupos podem estar plenamente integrados numa sociedade sem perderem a sua especificidade. De igual modo, defende a ausência de desvantagens sociais e económicas ligadas a aspectos étnicos ou religiosos, a oportunidade de participar nos processos políticos, sem obstáculos do racismo e da discriminação e o envolvimento de grupos minoritários na formulação e expressão da identidade nacional.

Mas esta afirmação de princípios é só uma face da moeda. Há outra sempre presente no verdadeiro multiculturalismo. Tomando a Austrália como exemplo, o modelo multicultural exige a aceitação das estruturas e princípios básicos da sociedade australiana, incluindo a Constituição e o quadro legal vigente, tolerância e igualdade, democracia parlamentar, liberdade de expressão e de religião, inglês como língua nacional, igualdade de sexos, e obrigação de aceitar que os outros expressem os seus valores. No Canadá, entre os três objectivos essenciais do multiculturalismo está a unidade nacional (para além da igualdade e a participação social).

Portanto, enganam-se aqueles que julgam ver no modelo multicultural o expoente máximo do laxismo e a origem da falta de coesão social. Nenhum modelo é perfeito e definitivo. O multiculturalismo pode e deve evoluir. Uma direcção possível - o interculturalismo - acentua o seu carácter interactivo e relacional. Mais do que uma co-existência pacífica de diferentes comunidades, o modelo intercultural afirma-se no cruzamento e miscigenação cultural, sem aniquilamentos, nem imposições. Muito mais do que a simples aceitação do "outro", a verdadeira tolerância numa sociedade intercultural propõe o acolhimento do outro e transformação de ambos com esse encontro. Assim importa, mais do que nunca, consolidar e aperfeiçoar o modelo de diálogo intercultural. Se não o fizermos, podemos estar a destruir as pontes que nos farão muita falta no futuro próximo. Porque para isolar os radicalismos, precisamos mais de pontes do que abismos.

Rui Marques, Público, 23-08-2005

2 comentários:

bravo disse...

É um texto extenso mas em relação ao qual estou inteiramente de acordo!

armando s. sousa disse...

Também li no Público e não podia estar mais de acordo.
Um abraço.