13.9.12

Entre a acefalia e a bicefalia: uma viagem ao Bloco de Esquerda (segurem-se bem!)

Já sabemos que a Esquerda é arrogante: considera-se mais solidária, mais defensora dos desfavorecidos, mais justa, mais desinteressada, mais pensadora, mais cultural – e mais humilde, claro está. A Direita, obviamente, é o oposto: move-se pelo lucro, pelos interesses, pelo poder, pelos capitalistas, etc., etc., etc. Corolário desta arrogância de Esquerda: quando faltam os argumentos, apelida-se a Direita de fascista, nem que seja completamente a despropósito.

Também já sabemos que quanto mais à Esquerda, maior a arrogância. Basta ouvir um discurso de Louçã para percebermos que aquele homem é senhor da verdade do mundo e, claro está, que os oponentes são a escumalha da Terra. Por isso soa como um pregador puritano que nos tenta fulminar com a sua mensagem: o Bloco detém a Verdade Pura, a Direita é o desvio, a personificação do Mal.

Obviamente, segundo a propaganda do Bloco a sua ideia de Democracia é a mais pura e a sua ideia de organização interna é a única que assegura verdadeira democraticidade no seio de um movimento político.

Exploremos um pouco mais estas ideias propagandeadas.

O Bloco defende realmente uma democracia diferente. Apelida o sistema democrático representativo vigente de “falsa democracia” ou de “democracia burguesa”. Em alternativa, propõe uma democracia “directa”. Esta consiste em níveis sucessivos de assembleias supostamente abertas à participação de todos, discutindo tudo, decidindo colectivamente, de preferência por consenso.

Por isso se excitaram tanto com as Assembleias Populares que começaram a surgir em Espanha e com o movimento Occupy Wall Street. Tentaram replicar a ideia por cá, com o (in)sucesso que conhecemos. Aquele aglomerado de pessoas e piolhos que se reunia na Praça da Batalha, no Porto, com frases tão líricas quanto vazias, deveria supostamente galvanizar o Povo do Porto, levá-lo a discutir o futuro da cidade e do mundo e encostar às cordas a Democracia Representativa. Em vez disso, como sabemos, não conseguiu a adesão de ninguém a não ser deles próprios e de uns jovens alemães e espanhóis que viajam pela Europa a pregar as maravilhas da democracia directa a troco de alojamento e comida grátis – turismo low-cost político, uma novidade.

A verdade é que o Povo do Porto ignorou olimpicamente a Assembleia Popular da Batalha, como o Povo de Lisboa ignorou a Assembleia do Rossio e o Povo de Nova Iorque a Assembleia do Occupy.

Como reagiu o Bloco?

Primeiro, com a habitual vitimização. A culpa, obviamente, é do sistema. As pessoas andam enganadas pela Comunicação Social, temerosas de afrontar os interesses (a vitimização face a uma suposta repressão terrível dos poderes intalados é outra constante da Extrema-Esquerda), adormecidas pela descrença na possibilidade de mudança, perseguidas à bastonada pela polícia (no Chiado, depois de insultarem e atirarem objectos a polícias que nada lhes tinham feito, lá veio a polícia de intervenção dar umas bastonadas para contentamento da sua teoria da forte repressão policial).

Segundo, com a certeza que uma correcta “consciencialização” do Povo irá mudar tudo, nascendo uma nova Democracia (haja paciência para esta gente, nunca aprendem nem desistem).

Para os bloquistas, não podem é restar dúvidas que esta forma de democracia “directa”, “popular” e “colectivista/consensual” é a única forma de Democracia verdadeira, a única forma de Democracia pura.

Muito interessante é a transposição destes conceitos de Democracia para o seu funcionamento interno enquanto movimento político.

Seria de imaginar que o Bloco teria uma organização interna “directa”, “popular” e “colectivista/consensual”, certo?

Eles tentaram, mas falharam.

Numa primeira fase, a Mesa Nacional era o órgão máximo do movimento. Não havia nenhum líder e todas as decisões seriam tomadas por esse órgão colectivo.

Era a acefalia (ausência de cabeça ou líder) a que me refiro no título deste artigo.

De facto, ao falar em acefalia bloquista não queria insinuar que a massa cinzenta não abunda para aqueles lados (se bem que…). Queria apenas aludir a esta ideia purista de ausência de líder, de decisões colectivas/consensuais, de poder partilhado por todos, que supostamente está no DNA do Bloco e estaria nesta primeira liderança colectiva.

Claramente esta ideia provém das correntes trotsquistas dentro do Bloco e é herdeira da crítica de Trotsky à ditadura do regime soviético de Estaline. Para Trotsky, um dos principais desvios do comunismo soviético face ao socialismo “puro” era a natureza ditatorial do regime – embora nunca se tenha queixado da mesma enquanto esteve no topo do poder, no tempo de Lenine, mas enfim...

Voltando à evolução do tipo de liderança no Bloco: obviamente esta organização acéfala era muito bonita mas pouco ou nada prática. Imagino que o tempo de resposta nem sempre seria o melhor.

Passaram então a uma segunda fase, em que entenderam útil eleger um líder. Perdão, um Coordenador! A designação não era casual: o Bloco nunca poderia ter um líder ou presidente. Mesmo um secretário-geral (ou qualquer outra designação que evidenciasse um “primus inter pares”) seria uma traição ao espírito colectivista. Abrenúncio!: Louçã seria um mero Coordenador, um instrumento para agilizar a implementação das decisões colectivas.

Todos sabemos que Louçã foi bem mais do que isso, mas o manto moral tinha de ser preservado.

Entramos agora na terceira fase, a da sucessão de Louçã. E este, apesar de todas as grandiloquentes proclamações colectivistas, não resistiu à tentação muito pouco democrática de escolher sucessor, qual monarca árabe. Então e a discussão colectiva? Então e a decisão por consenso? Então e a superioridade democrática face aos outros partidos? Era tudo um castelo de ilusões em vias de ruir estrondosamente.

De facto, inicialmente Louçã escolheu João Semedo. E houve quem não gostasse, nomeadamente os ex-UDP. Só depois dos ex-UDP recusarem a escolha de João Semedo é que começaram a procurar uma outra solução.

E que solução foi essa? A bicefalia! A liderança passará a ser detida por João Semedo e Catarina Martins.

(Uma curiosidade: recentemente eram os ex-PSR – Louçã e companhia limitada –, supostamente trotsquistas e, portanto, colectivistas, que queriam uma solução de liderança individual com João Semedo; e eram os ex-UDP – Fazenda y sus muchachos –, supostamente maoístas e, portanto, menos dados a lirismos de liderança colectiva, que queriam uma solução colectiva. Ainda agora se vê que são os ex-PSR a querer a solução bicéfala e os ex-UDP a querer a solução colectiva, donde se vê também que as diferenças têm mais a ver com personalidades e nomes do que com elevados princípios morais e democráticos. Isto vai começar a aquecer para aqueles lados!)

Esta solução bicéfala tem muitos aspectos curiosos:

Desde logo, há uma clara indigitação dos novos líderes pelo Querido Líder cessante, muito longe da democracia interna de qualidade supostamente superior que tanto apregoam. As eleições directas do PSD, do PS e do CDS são claramente mais democráticas que esta solução imposta de cima para baixo.

Depois, é claramente uma solução de compromisso entre dirigentes de topo desavindos, mais uma vez de cima pra baixo, alienando a totalidade dos militantes que se vêem perante um facto consumado.

De facto, eu entenderia que continuasse a existir apenas um líder ou que se voltasse a uma solução colectiva. O que não entendo é a solução bicéfala.

De facto, porquê dois líderes?

Se fosse só um seria menos democrático? Isso significa que a liderança de Louçã foi pouco democrática?

Quando é só um, há tendência para o autoritarismo? Isso significa que a liderança de Louçã foi autoritária? A solução de um só líder não resultou? Isso significa que a liderança de Louçã falhou?

E porquê dois e não três ou quatro ou vinte? O que torna a liderança bicéfala melhor que uma liderança tricéfala, quadricéfala, multicéfala?

Para revestir esta solução com um manto de elevados princípios morais e políticos, os proponentes desta solução apelidaram-na de “paritária”. O Bloco poderia assim manter a sua arrogância política: estaria de novo na vanguarda política, sendo o primeiro partido político a ter uma liderança “paritária”. Que modernos!

Mas, mais uma vez, porquê paritária em género sexual e não paritária em origem geográfica, alguém do interior e alguém do litoral? Ou paritária em orientação sexual, alguém hetero e alguém homo? Ou paritária em idade? As possibilidades de combinação paritária são infinitas!

E porque estão a excluir os transsexuais e transgenderistas? Logo o Bloco, que tanta atenção dedica a estas questões de géneros!

A verdade é que o número não revela a qualidade democrática da liderança. Não se é mais democrático por se ter dois em vez de um.

De facto, um líder (individual) pode respeitar integralmente as regras democráticas, executar apenas o programa do mandato que lhe foi conferido e consultar periodicamente os seus eleitores. E, do mesmo modo, uma liderança grupal pode mandar sem ouvir ninguém fora desse grupo restrito nem atender ao interesse geral – chama-se a isso Oligarquia e já existe desde a Grécia Antiga.

Donde que podem tentar cobrir esta solução de liderança com mantos de democracia avançada, paritária, progressista, o que quiserem. A verdade é esta: é uma solução de recurso, imposta de cima para baixo, que nada tem de democrática.

O manto caiu: falam em democracia “directa”, mas na verdade querem é que seja controlável; falam em democracia “popular”, mas na verdade querem é que seja ditada pelos seus próceres; e falam em democracia “colectivista/consensual”, mas na verdade querem é que seja manipulada para os seus objectivos. O autoritarismo sempre latente na extrema-esquerda está a vir ao de cima.

Obviamente, nem todos no Bloco estão a aceitar isto passivamente.

Assim, terminamos esta viagem ao Bloco com um vislumbre do destino a que não poderá escapar: o Bloco vai explodir, por entre diferenças insanáveis de estratégia por motivos de elevadíssima moral política que conduzirão a conflitos tristes que estilhaçarão o Bloco em mil pedaços. Ok, vá, talvez não em mil mas pelo menos em seis ou sete.

Numa coisa concordo com eles: o futuro será melhor. Só que não será deles – felizmente!