Mário Soares começou a sua ofensiva numa direcção previsível, dizendo que o prof. Cavaco não pode ser Presidente da República, porque não tem uma “cultura humanística” e não passa, no fundo, de um puro técnico com uma visão estreita e viciada das coisas.
Nada mais natural que Soares pense e acredite nisto. Nasceu numa família política (o pai era uma personagem importante do partido de Afonso Costa), cresceu num ambiente dominado pelo marxismo (Álvaro Cunhal foi, para ele, um professor e um mentor) e viveu durante meio século as polémicas teológicas da esquerda. Para resistir ao comunismo, uma ideologia “totalitária” (não gosto da palavra, mas não há outra melhor), Soares precisou de saber alguma filosofia e alguma história (até se formou em Histórico-Filosóficas, com uma tese, salvo o erro, sobre Teófilo Braga) e também de se interessar a sério pela arte e pela criação artística, nomeadamente por pintura e literatura, por causa da “teoria” do “realismo socialista”, que Estaline tentou impor em toda a parte. [...]
Cavaco, esse, veio de um meio relativamente pobre e, presumo, apolítico; e ficou confinado, por necessidade ou falta de estímulo, à sua profissão. Além disso, achava (e não faço ideia se ainda acha) o pensamento económico mais do que bastante para explicar o mundo, no que aliás se não distingue da generalidade dos colegas, uma classe particularmente pouco lida e intelectualmente limitada. Só depois, tarde na vida e já primeiro-ministro, descobriu que existia uma realidade irredutível à sua egrégia disciplina. E mesmo assim volta sempre à origem, como, por exemplo, na famosa metáfora da boa e má moeda, que ajudou a liquidar Santana.
Posto isto, sobra uma pergunta óbvia: a diferença cultural entre Cavaco e Soares — essencialmente uma diferença de época, de família e dinheiro —pesa num Presidente da República? E a resposta é “não”. Pesa num almoço, não pesa em Belém. [...]
Vasco Pulido Valente, Público, 4-11-2005
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