Intervenção feita no debate “A crise política e a convocação de eleições antecipadas”, decorrido na sede do PS/Porto em Julho de 2004. Para além da intervenção contida neste texto, este debate contou com intervenções do Secretário-Geral da JS/Porto, do Presidente da JP/Porto e de um representante do BE/Porto. Após estas intervenções houve um período de debate com o público presente.
Muito se tem escrito e falado sobre o convite a Durão Barroso para presidir à Comissão Europeia e sobre a pertinência, ou não, da convocação de eleições antecipadas.
I. A saída de Durão Barroso: honra ou fuga?
Em primeiro lugar, convém rebater o argumento que a saída de Durão Barroso significaria uma fuga de um primeiro-ministro em dificuldades. É um argumento que não faz sentido. Essa saída só pode ser vista como uma promoção, um reconhecimento do trabalho realizado à frente do governo português. Alguém imagina que, em toda a União, não existiriam outras possibilidades para a liderança da Comissão? Obviamente que não. O que sucede é que Durão Barroso é visto, entre os seus pares, como alguém competente, capaz de liderar eficazmente os destinos da União.
Aliás, não deixa de ser interessante verificar que quem desvaloriza hoje o convite ao nosso primeiro-ministro é quem ontem tudo fez para que António Guterres ou António Vitorino fossem convidados. Seria por ser uma desconsideração para Portugal ou para os próprios?
Finalmente, relembre-se que o próprio Presidente da República considerou (sem reservas) tal convite como uma honra e um reconhecimento para Portugal e para o próprio Durão Barroso.
II. Crise ou não crise, eis a (falsa) questão
A oposição (e os media) falam na existência de uma crise. Mas esquecem-se que, se não forem convocadas eleições antecipadas, não existe qualquer crise! Sai o actual primeiro-ministro e, no quadro da presente maioria parlamentar, nomeia-se um novo Chefe do Governo.
Além disso, esta evolução é a que tem mais respaldo jurídico-formal, decorrendo da própria Constituição Portuguesa.
Foi, de resto, o que sucedeu quando Pinto Balsemão foi nomeado primeiro-ministro. Embora em condições trágicas e lamentáveis, o facto é que houve uma vacatura do lugar de Chefe do Governo, tendo a mesma sido preenchida através da nomeação de um novo primeiro-ministro, no quadro de uma maioria parlamentar, sem recurso a eleições antecipadas.
Quem defende a suposta “crise”, defende também que há argumentos a favor da convocação de eleições antecipadas. Desde logo, o argumento ad hominem. Santana Lopes não seria pessoa com capacidades para liderar um governo. Ora, isto não é um argumento; é um preconceito, porque baseado em impressões generalistas, que em nada abonam quem as produz.
Há também quem diga que Santana Lopes não tem legitimidade partidária, por não ter sido eleito líder nem indicado para assumir a liderança do governo em Congresso Nacional. Embora esse seja, sobretudo, um problema interno do partido, é fácil perceber que tão-pouco é um argumento válido. Os Estatutos Nacionais do PSD são claríssimos: entre Congressos, o órgão máximo do partido é o Conselho Nacional, que se pronunciou a favor da indigitação de Santana Lopes como primeiro-ministro, por 98 votos a favor e 3 contra.
III. Casos em que o Presidente da República admite dissolver a Assembleia da República
Refira-se, também, que o próprio Presidente da República definiu, em tempos, os casos em que considerava apropriada a dissolução da Assembleia da República e consequente realização de eleições antecipadas.
Há dois casos que claramente nada têm a ver com a situação actual: o Parlamento mostrar-se incapaz de gerar soluções governativas estáveis ou a necessidade, consensualmente reconhecida, de adaptação dos calendários eleitorais.
Uma terceira hipótese seria utilizar a dissolução do Parlamento como uma forma de prevenir ou solucionar crises políticas ou institucionais graves. Comentarei esta hipótese mais para o final [ponto V], por ser a mais citada pela Esquerda.
A não ser nestas situações anteriores, o Presidente defende que a dissolução só deve verificar-se em três circunstâncias excepcionais e muito estritamente delimitadas:
· Quando a actual maioria não permitir a formação de um governo capaz de mobilizar adequadamente as energias nacionais para as tarefas que se colocam ao país;
· Quando o interesse nacional exigir a relegitimação da representação parlamentar;
· Quando a representação parlamentar, no entender do Presidente da República, deixar definitivamente de corresponder à vontade do eleitorado.
Ainda segundo o Presidente, há uma condição prévia a estas três circunstâncias excepcionais: a dissolução só seria politicamente ajustada quando o Chefe de Estado estivesse persuadido de que haveria uma predisposição nacional para gerar, nas consequentes eleições, alternativas consistentes aos poderes em funções. Ora, nada permite supor que saia uma maioria estável de esquerda de umas hipotéticas eleições antecipadas. O PS nunca obteve maioria absoluta em 30 anos de Democracia e nada permite garantir que o consiga agora. E uma coligação com outras forças de esquerda seria, certamente, menos estável que a coligação actual, para além de um enorme retrocesso para o país!
Logo, a condição prévia a essas três circunstâncias excepcionais não se verifica. Mas, na minha opinião, essas próprias circunstâncias excepcionais tão-pouco se verificam.
A primeira circunstância seria a actual maioria não permitir a formação de um governo capaz de mobilizar adequadamente as energias nacionais para as tarefas que se colocam ao país. Ora se há governo capaz de tal mobilização, é o actual, nomeadamente no que toca a uma das principais tarefas que agora se coloca ao país: a redução do défice orçamental, objectivo que o PSD tem atingido e que teve como causa, precisamente, a governação socialista.
Aliás, é engraçado ver alguma Esquerda a usar como argumento a favor da dissolução o facto de Santana Lopes ser, na sua visão, um líder populista e propenso a medidas despesistas, pondo em perigo o objectivo da consolidação das contas públicas. Enviesadamente, estão a aplaudir a actual coligação PSD/CDS pela política de redução do défice orçamental (quando há bem pouco a criticavam) e a condenar o descontrole orçamental do governo guterrista. Mais vale tarde que nunca. Apetece perguntar onde estavam quando o Prof. Cavaco Silva publicou o famoso artigo “O Monstro”, em que criticava fortemente o despesismo do orçamento do governo anterior... Ora se defendem, ainda que indirectamente, que a actual coligação está a corrigir o défice criado pelo anterior governo, como podem defender a convocação de eleições antecipadas e o regresso da Esquerda ao poder?
Por isso, este potencial motivo de dissolução funciona a favor da não convocação de eleições. Se há solução que garanta estabilidade e mobilização para as tarefas nacionais, ela é a da nomeação de um novo primeiro-ministro no quadro da actual maioria parlamentar, dando seguimento a um governo estável e que tem vindo a resolver os problemas que se colocam ao país (sendo isso particularmente óbvio quando o comparamos com o anterior governo).
A segunda circunstância excepcional seria o interesse nacional exigir a relegitimação da representação parlamentar. É preciso dizer desde logo que o Presidente não fala em relegitimação do governo, mas sim em relegitimação parlamentar. Isto tem toda a lógica visto termos um regime político-constitucional semi-presidencialista de pendor parlamentar, que afasta portanto um “presidencialismo de primeiro-ministro”. A legitimidade democrática do governo é inquestionável mas indirecta (decorre da legitimidade dos deputados à Assembleia da República, da qual emana).
Ora não há qualquer necessidade de renovar a legitimidade dos deputados. Estes foram eleitos com um programa bem definido, sufragado para 4 anos, que a maioria se propõe continuar até ao final do seu mandato.
Se defendermos o contrário, caímos no perigo de criarmos um cesarismo do primeiro-ministro, considerado como real detentor da legitimidade democrática. Isto implicaria que o sistema político de pendor parlamentar seria meramente formal, sendo que na prática a legitimidade democrática directa residiria no líder do partido vencedor das eleições legislativas.
Para além da redução da Constituição a um documento meramente formal (neste domínio), assistiríamos ainda a uma diminuição do papel do Parlamento. Ora, existem fortes razões para os constituintes de 1975 terem responsabilizado o Governo perante o Parlamento e terem feito decorrer a legitimidade democrática indirecta daquele à legitimidade democrática directa deste. Desde logo, o facto de a Assembleia da República ser por natureza um órgão muito mais plural e de debate, onde está representada a Oposição. De resto, a competência para legislar sobre as grandes decisões nacionais é de reserva absoluta da Assembleia. Só o Parlamento pode legislar em questões como impostos, por exemplo.
IV. A vontade do eleitorado
Alguma esquerda defende que a relegitimação da representação parlamentar seria necessária não pela mudança de primeiro-ministro, mas pelo resultado das últimas eleições para o Parlamento Europeu. Entroncamos aqui na terceira circunstância excepcional definida pelo Presidente da República, em que este admite dissolver o Parlamento e convocar eleições quando se convença que a representação parlamentar deixou definitivamente de corresponder à vontade do eleitorado.
O argumento da esquerda é que o eleitorado, nas últimas eleições europeias, exprimiu-se contra o governo, votando claramente nos partidos da oposição. Logo, a representação parlamentar teria deixado de corresponder à vontade do eleitorado.
A esquerda esquece-se, no entanto, do perigo que seria um resultado em eleições não legislativas levar à queda de um governo. Seria criada uma enorme instabilidade devido à incerteza que todos os governos experimentariam de agora em diante. A cada eleição (autárquicas, regionais, europeias, presidenciais; eventualmente, até, alguns referendos), o governo ficaria com medo de um mau resultado levar à convocação de novas eleições legislativas por parte do Presidente da República. Que governo sentiria à-vontade para tomar medidas impopulares a curto prazo para obter benefícios a médio/longo prazo?
Já para não falar nos efeitos na nossa economia de tal instabilidade e incerteza. Sabemos como os agentes económicos são particularmente sensíveis à estabilidade política e um clima de incerteza quase permanente seria claramente prejudicial à nossa economia.
Para além disso, convém vermos os antecedentes nesta matéria. Os portugueses sabem que não é o mesmo votar numa eleição legislativa ou votar noutras eleições e não esperam que o resultado nestas últimas tenha consequências directas na manutenção em funções do governo. Pensar o contrário é um insulto à inteligência dos portugueses e é um erro, se analisarmos os resultados de eleições passadas. Basta vermos que os portugueses deram maioria absoluta ao PSD nas legislativas de 1987 e de 1991 mas, pelo meio, penalizaram fortemente o PSD nas eleições autárquicas de 1989, tendo, por exemplo, dado a vitória ao PS nas duas principais Câmaras do país (Lisboa e Porto).
Mas se quisermos uma prova ainda mais forte da capacidade dos portugueses distinguirem as diferentes eleições, recordemo-nos que em 1987 houve duas eleições simultâneas, para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu. No mesmo dia, no mesmo momento, os portugueses preencheram dois boletins de voto, um para o parlamento nacional e outro para o europeu. Nas eleições legislativas, como já foi referido, o PSD obteve maioria absoluta, com 50,22% dos votos; nas eleições europeias, não passou dos 37,45%! Há melhor prova de que os portugueses distinguem uma e outra eleição?
V. A dissolução como forma de prevenir ou solucionar crises graves
O último motivo que o Presidente da República considera justificar a dissolução da Assembleia da República é o de tal dissolução prevenir ou solucionar crises políticas ou institucionais graves. Como disse atrás, deixei este motivo para o final por ser o mais citado pela oposição.
Em primeiro lugar, convém deixar bem claro que não há crise institucional. As três instituições democráticas (Assembleia, Governo, Presidente) têm um relacionamento normal em Democracia e não houve, nos dois últimos anos, nada que nos possa levar a afirmar o contrário.
Quanto à existência de uma crise política, sejamos claros: se não forem convocadas eleições antecipadas, também não existe qualquer crise. Como já foi dito, esta é a solução com mais respaldo jurídico-constitucional. Pode-se concordar ou não com a nomeação de um novo primeiro-ministro no âmbito da actual maioria parlamentar, mas crise não há. Há, sim, um impasse causado unicamente pela demora do Chefe de Estado em decidir. Se este tivesse rapidamente decidido pela nomeação de um novo primeiro-ministro, teríamos já um novo líder governativo em funções, para cumprir o mandato de que a coligação no poder está investida pelas eleições de 2002.
Para além disso, a convocação de eleições antecipadas obedece a prazos legais, ficando o país num impasse de meses. Por exemplo, provavelmente só teríamos Orçamento de 2005 aprovado em Abril desse ano.
Tudo isto acarreta o perigo de desaceleração económica, pondo em risco a retoma que tanto necessitamos. Vítor Constâncio e Miguel Cadilhe disseram que a convocação de eleições teria um impacto mínimo na economia. Ora, numa situação de grande crescimento económico poderíamos aceitar um tal impacto; na situação actual, não. Por isso a CIP, a AIP, a AEP e tantos outros se têm pronunciado contra a dissolução da Assembleia. A própria UGT foi extremamente prudente na sua avaliação da situação política.
Finalmente, o principal argumento contra a dissolução da Assembleia da República como forma de prevenir ou solucionar uma suposta crise política. Se tivéssemos hoje eleições legislativas, ou teríamos de novo uma maioria de Centro-Direita (sendo toda esta charada uma enorme perda de tempo, com consequências políticas e económicas graves), ou teríamos uma maioria de Esquerda de estabilidade no mínimo duvidosa. O PS nunca conquistou maioria absoluta em eleições legislativas e nada nos permite pensar com certeza que a obteria agora (bem pelo contrário, dada a avaliação que os portugueses fazem dos governos guterristas). Ora, alguém pensa que um governo socialista minoritário ou um governo de coligação PS/PCP, PS/BE ou PS/PCP/BE traria uma solução mais estável para Portugal e mais capaz de atingir os importantes desígnios nacionais que agora enfrentamos? Sobretudo se compararmos com a estabilidade da actual coligação no poder? Haja lucidez... Portanto, este é mais um argumento que se volta a favor da nomeação de um novo primeiro-ministro no quadro da actual maioria parlamentar.
VI. Resumindo
- O convite a Durão Barroso é uma honra para Portugal; fuga de quê, se a situação só tem tendência a melhorar?;
- Defender a necessidade de relegitimação dos Deputados equivale a cair numa perigosa concepção cesarista do nosso regime;
- Considerar que a representação parlamentar deixou de corresponder à vontade do eleitorado é algo que é desmentido pelo passado e que constitui um perigosíssimo precedente;
- Não há crise institucional nem crise política, mas sim um impasse causado pelo Presidente da República;
- As eleições antecipadas não têm, portanto, razão de ser – excepto por oportunismo eleitoral da esquerda, que provavelmente lhe sairia pela culatra;
- Tais eleições impediriam a actual maioria de cumprir a consolidação das contas públicas e o crescimento sustentado, acarretando o perigo de crise e instabilidade políticas, para não falar no perigo de desaceleração económica;
- O Presidente da República, neste quadro, só pode decidir pela manutenção da maioria parlamentar, da estabilidade política e do crescimento económico, dando posse a um novo primeiro-ministro no quadro dos resultados das últimas eleições legislativas.
Fernando Bravo
Secretário-Geral JSD/Porto (CPC)